Parece
que algo novo teve início exatamente ali, quando eu estava começando a conceber
o jardim lá em Ibitipoca.
Na
verdade, nada estava se iniciando, pois na época eu já trazia comigo 66 anos de
muitas experiências, muitas tentativas e erros e muitas informações, algumas
processadas e testadas vivencialmente e incorporadas à minha compreensão do
mundo, e outras tantas descartadas por se revelarem sem ressonância dentro de
mim.
Mas
algo novo teve início ali com o jardim de Ibitipoca.
Primeiro
foi a minha entrega àquele verdadeiro ato de criação, procurando vislumbrar um
jardim em cima daquele terreno irregular, muito arenoso e cheio de pedras, uma
fina cobertura sobre um solo rochoso, com muitos entulhos que sobraram da
construção da casa, além de valetas e muito mato.
E
a partir desse primeiro passo, foram se sucedendo experiências cada vez mais
fantásticas, desde a concepção do desenho à preparação do terreno para receber
o jardim, o tratamento do solo, a escolha das mudas, o teste de plantio aqui e
ali, a busca constante de uma harmonia visual e energética. Enfim, ao longo de
vários meses, o jardim começou a tomar forma.
E
paralelamente a todo esse processo começou a crescer dentro de mim uma ligação
muito especial com a própria terra. Não seria exagero dizer que dentro de mim cresceu
um amor por aquele terreno. Eu comecei a experimentar um prazer imenso ao tocar
a terra, ao preparar uma cova para um novo plantio, ao misturar o esterco, ao arrancar
ervas daninhas e pedregulhos. Eu enfiava a mão na terra com gosto, com muito
gosto. E, de preferência eu colocava roupas velhas e surradas para ficar mais à
vontade e poder sentar, me debruçar e até deitar sobre a terra nessa tarefa de
formar o jardim.
E
como se não bastasse, toda aquela área de Ibitipoca é repleta de pássaros, de
cantos e cores variadas. E todo esse meu trabalho de jardinagem sempre foi
acompanhado por essa plateia fiel: tico-ticos, canários, coleiros, saíras,
maria preta, pintassilgo, beija-flor, e muitos, muitos outros.
Momentos
mágicos eram aqueles em que eu, debruçado na terra, dissolvido naquela comunhão
com o que sentia ser a própria “mãe-terra”, de repente era despertado por um
canto especial. E eu me virava e contemplava aquele novo visitante que parecia
estar me chamando e dizendo: eu estou aqui. Momentos em que eu me perguntava: o
que mais é preciso para ser feliz?
E
da experiência do jardim passei ao pomar no terreno ao lado. Um terreno ainda
mais virgem no qual tive o cuidado de respeitar as árvores e arbustos mais
originais, assim como o próprio mato e as plantinhas silvestres com suas mais
variadas flores que se abrem em épocas distintas do ano. E teve início um outro
processo, paralelo ao do jardim. Semelhante e ao mesmo tempo diferente. Enquanto
no jardim, em apenas um mês eu já podia perceber se determinada planta se
adaptava ou não àquele local, àquele solo, ao Sol ou à sombra, se ela iria
florescer ou não, ali no terreno do pomar as coisas aconteciam diferentemente.
Só para citar um exemplo, o primeiro pé de caqui que plantei, após um início
promissor, cheio de folhas novas, de repente perdeu todas elas e por quase um
ano permaneceu apenas aquele galho aparentemente seco até que, já sem
esperanças, eu me decidira a plantar uma outra nova muda. Mas, para minha
surpresa, de repente, novas folhas surgiram, novos ramos brotaram e aquele mesmo
pé de caqui começou a tomar forma de um arbusto já adolescente, cheio de folhas
e vida. E essa mesma experiência aconteceu também com a parreira de uva, com a
graviola, com a acerola. Com as frutas do pomar aprendi muito na arte de
observar, de esperar com paciência, de perseverar, de confiar e de entregar à
existência.
Surpresas
se sucediam, como aquele pé de tomate silvestre que surgiu ao lado de um pé de
abacate, levando-me a lembrar do Gilberto Gil, em Refazenda – “enquanto o tempo
não trouxer teu abacate, amanhecerá tomate e anoitecerá mamão”. E que delicias
eram aqueles tomates na salada sempre bem preparada pela Nirava.
A
verdade é que a existência cuida; e aquilo que é, é. As coisas são do jeito que
são, acontecem do jeito que acontecem, e não muitas vezes do jeito que a gente
quer, e mesmo quando a gente força a barra, o resultado costuma ficar meio
estranho, parece que algo não fluiu normalmente, por isso resultou meio torto,
meio capenga.
Aliás,
essa nossa (minha e da Nirava) experiência de virmos regularmente a Ibitipoca
nos finais de semana, eu sempre cuidando do jardim e do pomar e ela cuidando de
suas criações artísticas e da casa, fez crescer em mim essa satisfação em
cuidar das coisas mais simples que nos rodeiam. É claro que pela altitude de
Ibitipoca e pelo ambiente mais rural que urbano, o ar ali é sempre bem puro, e
as noites silenciosas favorecem um sono restaurador. Mas uma das coisas mais
simples e mais básicas do cuidado com a gente é o preparo do alimento que
consumimos. E acompanhando a Nirava, nisso que ela faz bem e com prazer, eu me
decidi a mudar mais uma rotina na minha vida.
Eu,
que em Juiz de Fora moro sozinho, e estava acostumado a frequentar restaurantes
regularmente, resolvi assumir a cozinha de casa e preparar minhas próprias
refeições.
E
eu não tenho dúvida que essa nova função de cozinheiro nada mais foi do que uma
sequência natural daquele primeiro passo na função de jardineiro. O cuidado com
a terra, o cuidado com o corpo, tudo faz parte do cuidado com a natureza, tudo
é uma só coisa.
E,
da mesma forma, que no jardim e no pomar, o aprendizado continua sempre
acontecendo também na cozinha e cada vez mais rico. Não abri mão da valiosa
receita do arroz integral que me foi passada pelo bom amigo Sandey lá em
Fortaleza e agreguei uma série de outras receitas culinárias. Aprendi as manhas
do uso do alho e da cebola, dos mexidos e remexidos, dos refogados e dos ensopados,
dos bolos e das tapiocas.
Em
casa, passou a ser uma curtição essa minha nova função de “dono de casa”. Um
duplo prazer: o fazer e o comer. E desapareceu até uma certa má vontade que
antigamente eu sentia em lavar pratos e talheres. Agora, essas tarefas fluíam
como parte de todo o processo gostoso da cozinha.
Mas,
como disse, o aprendizado não para e a existência cuida de nos apresentar
desafios e desafios. E foi assim, que por obra de um exame de sangue feito em
hora imprópria e, que por isso resultou numa interpretação errada, eu achei que
estava com certo problema de saúde. Esse foi o empurrão necessário para que eu
recorresse a uma série de estudos que sempre estiveram disponíveis para mim,
mas que nunca cuidei de levar adiante em minha própria vida. Por um lado eram
estudos a respeito dos malefícios da farinha de trigo, dos laticínios, dos
embutidos, etc.; por outro lado os benefícios do óleo de coco, do açafrão, da
linhaça, do cloreto de magnésio, do coco, do abacate, do limão, da maçã, e por
aí vai.
Tudo
isso foi uma revolução na minha culinária. Mais sabor, mais saúde e mais
disposição.
E
o melhor da festa é que tudo isso contagiou a Nirava e, nessas questões, como em
muitas outras, é sempre bom a gente estar juntos com prazer, cumplicidade e
companheirismo.
E
fechando o circulo, mais um passo está surgindo à frente: a antecipação para já
de nosso projeto de horta orgânica em Ibitipoca. Anteriormente, pensávamos
nesse projeto só para daqui a 1 ano e meio quando a Nirava se aposenta e iremos
nos mudar de vez para lá. Achávamos difícil implementá-lo agora devido à nossa
ausência durante os dias da semana. E muitas hortaliças necessitam de água
diariamente ou quase. Mas estamos pensando agora numa alternativa com
mangueiras flexíveis e rígidas, com conexões e furos que poderão ficar ligados
permanentemente, possibilitando uma irrigação mesmo durante nossa ausência.
E
eu já sinto prazer só em pensar em todo esse processo de preparação dos
canteiros, da mistura de terras mais férteis, de esterco, de folhas secas, as
separações entre os canteiros de maneira funcional e com a devida estética e
limpeza, a localização estratégica perto da cozinha, a escolha das mudas... E o
mais gostoso: saborear um alface, uma rúcula, uma cenoura, uma couve... tudo
fresquinho, colhido na hora.
Em
toda essa história eu só posso me sentir abençoado, me sentir agradecido pelo
que a existência tem me proporcionado.
Quanta
beleza nisso tudo. Viver o simples, curtir as pequenas coisas, estar atento ao
que está aqui presente neste exato momento, ao que acontece agora, aqui.
Mas
vivendo tudo isso, e sendo humano, não consigo deixar de olhar ao redor e ver
toda essa insanidade espalhada no mundo, essa proliferação de ódio e violência,
esse sistema perverso que só visa lucro a qualquer preço, sem respeito ao ser
humano e à natureza.
Mas
assumo que esse mundo é o mundo em que vivo. Sou tão humano como qualquer
flagelado das guerras de tribos africanas, como qualquer menina estuprada na
Índia, como qualquer imigrante ilegal na Europa, como qualquer magnata de Wall
Street ou qualquer deputado corrupto de nosso país. Fazemos parte de uma só
humanidade, com toda injustiça, toda violência, todo desrespeito que nela se
alastra. E também com toda bondade, todo sorriso e toda esperança que nela
encontramos.
Esse
é o meu mundo. Quero sim, estar sempre atento ao que acontece nesse mundo,
procurar sempre desvendar as cortinas que nos impedem ver as artimanhas dos grupos
poderosos na política e nas finanças que tudo exploram inclusive os meios de
informações para manipular as populações. Mas quero também estar atento às
contribuições científicas que nos abrem novas oportunidades saudáveis de viver
neste lindo planeta, saber das coisas bonitas que estão acontecendo.
E,
acima de tudo, quero estar consciente de meu próprio processo pessoal o qual
acontece nesse meu microcosmos, de minha alegria nas pequenas coisas. Quero
buscar a lucidez para ver e entender as coisas, para alcançar a paciência, para
exercitar com humildade e tolerância a aceitação das pessoas como elas são e
dos acontecimentos como eles se apresentam. Ter a sabedoria para interferir nos
processos somente na hora que for necessário e, se possível, da maneira mais
adequada. Quero enfim estar em paz comigo mesmo.